24 de Agosto – 21º Domingo do Tempo Comum - Ano C
É muito claro que no Antigo Testamento encontramos perspectivas teológicas muito distintas e concepções de Deus também diferentes. Há até quem diga que há duas religiões distintas: uma, nacionalista, baseada na libertação histórica do povo de Israel e sua saída do Egipto para a Terra prometida, e outra, universalista, baseada num Deus Criador, Pai de todos os povos, amigo de todas as nações e respeitador da diversidade das culturas. A passagem do profeta Isaías que hoje lemos na celebração litúrgica pertence, evidentemente, a esta segunda perspectiva: Deus é o Criador de tudo e todos e o diálogo e fraternidade universais constituem o seu projecto e a sua vontade. No mundo de hoje, com tanta violência e intolerância político-religiosa, temos aqui uma mensagem importante e forte para orientar os caminhos da humanidade.
Também a carta aos Hebreus, na linha do que disseram alguns profetas e os autores dos livros sapienciais, revela um pouco mais sobre quem é o nosso Deus, o Deus de Jesus. Comparando-O a um pai, explica por que motivo Ele por vezes nos repreende: porque nos ama, porque se interessa por nós, porque se nos vê num caminho errado ou de perdição, quer salvar-nos e nos adverte dos perigos de tal situação. Quem não ama a outro, esse não repreende, não corrige: deixa o outro perder-se…
O Evangelho de Lucas, no trecho de hoje, parece contradizer a imagem do Deus de Jesus como alguém infinitamente bom, misericordioso e que perdoa sempre… parece que se aborreceu de vez e vai fechar a porta do seu coração e da sua morada a muita gente… Devemos entender estas palavras, já o sabemos, não à letra, mas no significado que elas encerram: há que ser vigilante, há que não esmorecer, há que buscar permanentemente a rectidão e a santidade – sem esquecer ou fechar os olhos ao exemplo daqueles que parecem mais afastados das coisas de deus e, afinal, vivem profundamente os valores evangélicos.
UMA MULHER QUE COMPREENDE TUDO
No passado dia 22, ocorreu a festa de Maria Madalena, a Apóstola dos Apóstolos, a primeira festa depois da morte do Papa Francisco que instituiu a sua celebração litúrgica, passando a figurar no Calendário Romano Geral, ao mesmo título que as festas dos Apóstolos. E parece que Leão XIV não o quer atraiçoar.
O Papa Francisco não conseguiu derrubar os muros construídos, expressamente, para impedir a ordenação das mulheres. Gostava de fazer pontes e acabar com os muros, mas aí, teve de parar. Tinha de contar com a afirmação de João Paulo II[1] e Ratzinger que se atreveram a decidir, de forma insólita, o futuro. Portanto, a sua escolha ficava limitada: abater esse muro ou provocar, na Igreja, um cisma que não podia desejar. Por essa razão, sentiu-se coagido a dizer algo que não pensava: esse problema está resolvido. Temos razões para dizer que não foi das melhores opções da sua vida.
Na Igreja não se devia privilegiar nem homens nem mulheres devido à originalidade própria de cada um. Quando se privilegia alguém, excluem-se os outros. O sentido do privilégio é não suportar que os outros possam ser como nós. A paixão pela originalidade de cada um não exclui ninguém. O gosto do privilégio é não se contentar de ser como é a sua própria condição. Esse gosto precisa de encontrar algo que não os coloca em comunhão com os outros, mas que os separa.
A argumentação que exclui as mulheres dos ministérios ordenados não me parece que tenha qualquer consistência. De facto, os textos do Novo Testamento (NT) não dizem que Jesus escolheu mulheres. Estamos a exigir dos textos aquilo de que eles não falam, mas atestam que foram elas que escolheram o Nazareno, que o seguiram e serviram e não foram excluídas. É importante não esquecer um pormenor que S. Mateus nos deixou, no seu estilo: sem contar mulheres e crianças (Mt 14, 21; 15, 38).
Um dos argumentos, para negar a Ordenação às mulheres, é dizerem que elas não participaram na Última Ceia, uma ceia religiosa, sim, mas também familiar e não necessariamente cultual. A narrativa pretende realçar a Ceia como a grande refeição de toda a sua família.
Os textos dizem, expressamente, quem era da família de Jesus. Quando lhe disseram que a sua mãe e os seus irmãos que estavam lá fora e queriam falar com ele, respondeu desta forma que pode parecer enigmática: a Minha mãe e os meus irmãos são aqueles que estão a ouvir a palavra de Deus e a põem em prática[2]. Todo esse mundo é a minha família.
Sabemos, no entanto, pelo NT, que Jesus ressuscitado ordenou Maria Madalena a evangelizar os discípulos, os Apóstolos, que tinham dispersado, perante a crucifixão do Mestre. Tornou-se a verdadeira Evangelizadora dos Apóstolos.
Segundo o cenário dos Evangelhos, no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã, ainda escuro, e viu retirada a pedra que o tapava. Maria estava junto ao túmulo, da parte de fora, a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. Perguntaram-lhe: Mulher, porque choras? E ela respondeu: Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta que era Ele. E Jesus disse-lhe: Mulher, porque choras? Quem procuras? Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo. Respondeu-lhe Jesus: Maria! Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: Rabbuni! – que quer dizer: Mestre! Jesus disse-lhe: Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: 'Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus.' Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: Vi o Senhor! E contou o que Ele lhe tinha dito[3].
Há uma cegueira cultural que não nos deixa ver o essencial dos textos. Por exemplo, o Evangelho proclamado no passado Domingo, fala de duas mulheres que acolheram, na sua casa, Jesus e o seu grupo. Eram duas mulheres que representavam dois mundos. Marta era do mundo antigo que fazia o que sempre se exigiu das mulheres, as tarefas da casa. Maria é a mulher que descobriu Jesus e a sua igualdade com os homens que é escutar a palavra de Deus e, neste caso, a palavra de Jesus.
Jesus tomou partido: Marta, Marta, tu inquietas-te e agitas-te com muitas coisas. No entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte que não lhe será tirada[4]. É uma mulher que escolheu ser discípula e Jesus elogiou-a pela escolha que fez.
Hoje, há muitas mulheres, teólogas e não só, para quem os textos dos Evangelhos testemunham que Jesus tratou as mulheres do mesmo jeito que tratava os homens. Têm dificuldade em aceitar a descriminação que recai sobre elas na Igreja.
A situação mudou, está em mudança, e não são apenas as mulheres que reclamam. Entre nós, Frederico Lourenço, um grande especialista da literatura grega e latina, tradutor da Bíblia grega e dos Evangelhos Apócrifos, documentou a importância das mulheres na vida de Jesus, sobretudo a de Maria Madalena, no texto retirado do Facebook | mural de Frederico Lourenço, 2022.
É um bom texto para conhecer muitos aspectos da longa história da descriminação da mulher na sociedade e na Igreja. No entanto, o que hoje pode ser lido, de forma límpida, nos Evangelhos, é que foi Jesus que ordenou Maria Madalena para transmitir e testemunhar, aos reconhecidos Apóstolos, a Ressurreição de Cristo, fundamento da fé da Igreja.
Frederico Lourenço, entre vários textos refere um apócrifo, encontrado no Egipto em 1945, que descreve Maria Madalena como uma mulher que compreende tudo, porque compreendeu o essencial de toda a vida humana. O que é ver nela algo de bem diferente, não só do cliché da prostituta arrependida, mas da grande figura do Novo Testamento.
O teólogo dominicano, professor de Oxford, cardeal sem pompa eclesiástica, também se deteve sobre Maria Madalena à procura na escuridão. Todos os relatos da ressurreição estão repletos de questões. Por duas vezes, perguntam a Maria Madalena porque está a chorar. Ela pergunta onde puseram o corpo. A ressurreição irrompe nas nossas vidas não como uma afirmação crua dos factos, mas com questões que nos interpelam.
Se ouvirmos as questões uns dos outros com respeito e sem medo, encontraremos uma nova forma de viver no Espírito. Maria ouve o seu nome: Maria! E responde Rabbuni! Mestre! É apropriado que ela, cuja vida é movida por um amor compassivo e terno, tenha o seu vazio preenchido com o seu próprio nome. Ela procurava um cadáver, mas encontrou mais do que poderia sonhar: o amor que está vivo para sempre[5].
Eis um livro verdadeiramente apaixonante! Boas Férias
Fr. Bento Domingues in Público, 27/7/2025
Novo vídeo com o testemunho do Fr. José Nunes, OP nos 40 anos da presença dominicana em Angola (Waku-Kungo).