2 de Novembro – Fiéis Defuntos - Ano C
A história da humanidade está cheia de santidade e de santos e santas! Graças a Deus! São todos aqueles/as que viveram a vontade e o plano estabelecido por Deus para toda a criação. São os que aceitaram e corresponderam à oferta da paternidade de Deus para as suas vidas, que procuraram viver como bons filhos e filhas no amor que o mesmo Pai neles derramou (como nos diz S.João na segunda leitura da liturgia de Todos os Santos). São, afinal, os que viveram as Bem-Aventuranças que lemos uma vez mais no Evangelho: todos os que viveram a bondade na simplicidade, a humildade no serviço, o compromisso pela justiça e a paz, a misericórdia e mansidão no acolhimento do outro. Muitos sofreram perseguições e o martírio (diz o Apocalipse que muitos branquearam a sua vida no sangue do Cordeiro), mas todos encontraram o verdadeiro sentido para a vida e, por isso mesmo, a autêntica felicidade. E houve, e há, realmente, santos e santas para todos os gostos… Uns mais introvertidos outros mais expansivos, uns mais contemplativos e outros mais activos, homens e mulheres, crianças e mais idosos… Enfim, são os 144 mil de que falava o livro do Apocalipse – número que não pode nem deve ser tomado à letra mas que simboliza a imensa totalidade de Todos os Santos e Santas de Deus.
E quando recordamos e celebramos os fiéis defuntos, no dia seguinte ao de Todos-os-Santos, não estaremos a prolongar a nossa fé de que a vida eterna e o céu – ou seja, a vida para sempre com Deus – é o destino de todos os seres humanos? Acredito bem que sim!
E que apelo maravilhoso encontramos também aqui, todos e cada um de nós, a ser santos. Recordemos o desafio bíblico «Sede santos como Deus é Santo» e o convite de Jesus «Sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso».
UM GRANDE FIM DE SEMANA
1. Os cristãos celebram neste fim de semana algo de extraordinário. Proclamam, neste Sábado, que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. A morte não é o sentido da vida. Caso contrário, seria a derrota final do ser humano que vive da esperança (1 Ts 4, 13-14).
Jean Delumeau[1], grande historiador católico, desejava acolher a hora derradeira em condições de poder dizer de novo a palavra do Salvador: Pai, nas tuas mãos entrego a minha vida. Morreu em 2020, aos 96 anos. Segundo o diário La Croix, o próprio historiador preparou o seguinte texto para ser lido no seu funeral: A minha vida teve as suas dores e as suas alegrias, os seus fracassos e os seus sucessos, as suas sombras e as suas luzes, os seus defeitos, os erros e as inadequações, mas também os seus impulsos e as suas esperanças. Terminei a minha corrida. Possa eu adormecer-me na tua paz e no teu perdão! Sê o meu refúgio e a minha luz. Rendo-me a ti. Entrarei na terra. Mas que o meu último pensamento seja o da confiança.
Esta é a linguagem do bom senso da verdadeira expressão da fé cristã.
2. Este ano, neste fim de semana, a construção litúrgica oficial celebra, no Sábado, a festa de Todos os Santos, canonizados ou não, a plenitude da vida humana. No Domingo, celebra os Fiéis Defuntos, onde cabem todos, todos, todos, como diria o Papa Francisco.
A ambiguidade destas designações exprime a nossa ignorância acerca da vida depois da morte. A imaginação atreveu-se a saber mais do sabe. Umas pessoas iriam para o céu, para disfrutar da eterna alegria de Deus. Outras teriam de ser purificadas pelo fogo para poderem entrar no céu. Outras ainda, que morriam em pecado mortal, iriam para o inferno, para o sofrimento eterno.
Estas representações pertencem a determinados momentos da história religiosa que ainda sobrevivem em muitos lugares: pessoas completamente realizadas, outras a precisar de purificação e outras condenadas para sempre.
As concepções que as alimentou não podem reclamar-se da teologia verdadeiramente cristã. A condenação eterna é uma ofensa à revelação da Primeira Carta de S. João (4, 8.16): Deus é amor. Tudo o que se disser em teologia cristã nunca poderá negar esta afirmação eterna. Não é o inferno que é eterno. Eterno é o amor que Deus nos tem.
Para este grande fim de semana, escolhi a apresentação do Apocalipse, uma imagem de Deus como futuro absoluto e incondicional.
O termo apocalipse, ao contrário do que sugere certa linguagem corrente, é a transcrição de uma palavra grega que significa revelação. Foi o título dado, que ficou para sempre, àquele que se apresenta como o último livro da Bíblia, um livro de consolação para a Igreja perseguida pelos imperadores romanos. Contém o belíssimo poema do grande sonho de uma divina consolação.
3. Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e a ameaça do mar já não existe. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, já preparada qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: Eis a tenda de Deus com os seres humanos. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem clamor e nem dor haverá mais.
Sim! As coisas antigas passaram! O que está sentado no trono declarou: Eis que faço novas todas as coisas. E continuou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. E disse-me ainda: elas realizaram-se! Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede, eu darei gratuitamente, da fonte de água viva. O vencedor receberá esta herança e eu serei o seu Deus e ele será meu filho[2].
Este grande poema, que vem no final do Novo Testamento, começa com este desígnio: Revelação de Jesus Cristo.
Deus encarregou-o de manifestar as coisas que brevemente devem acontecer e que Ele comunicou pelo anjo que enviou ao seu servo João, o qual atesta que tudo o que viu é Palavra de Deus e testemunho de Jesus Cristo.
Feliz o que lê e os que escutam a mensagem desta profecia e põem em prática o que nela está escrito, porque o tempo está próximo. João saúda as sete igrejas da província da Ásia: graça e paz da parte d’ Aquele-que-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem, da parte dos sete Espíritos que estão diante do seu trono e da parte de Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra! Àquele que nos ama e nos purificou dos nossos pecados com o seu sangue e fez de nós uma Realeza de Sacerdotes para Deus, seu Pai.
A Ele pertence a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Ámen! Eis que Ele vem com as nuvens! Todos os olhos o verão, até mesmo os que o trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa dele. Sim. Ámen! Eu sou o Alfa e o Ómega – diz o Senhor Deus – Aquele-que-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem, o Todo-Poderoso.
Eu, João, vosso irmão e companheiro na perseguição, na Realeza e na perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, fui movido pelo Espírito e ouvi atrás de mim uma voz potente como de trombeta, que dizia: O que vais ver, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas: à de Éfeso, de Esmirna, de Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Filadélfia e de Laodiceia.
Voltei-me para ver de quem era a voz que me falava. E, ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro; no meio dos candelabros, vi alguém com aparência humana. (…) Ele tinha na mão direita sete estrelas e da sua boca saía uma aguda espada de dois gumes; o seu rosto era como o Sol resplandecente com toda a sua força. Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Mas Ele colocou a mão direita sobre mim, dizendo: Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo! Escreve, pois, as coisas que vês, as que estão a acontecer e as que vão acontecer, depois destas. E este é o simbolismo das sete estrelas que viste na minha mão direita e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas e os sete candelabros são as sete igrejas[3].
Dominados por catecismos, falsamente realistas, evitamos este grande livro do Apocalipse, abandonamos o livro mais espantoso do Novo Testamento. O que não sabemos explicar, leva-nos a ignorar o que representa a transfiguração da plural linguagem cristã.
As representações do mundo e do ser humano estão em profunda e constante alteração. O céu, o inferno, o purgatório, o juízo final são metáforas dos desejos e dos medos humanos. São representações engrandecidas do além à imagem do que há de melhor e de pior neste mundo.
Fr. Bento Domingues in Público, 2/11/2025
UM GRANDE FIM DE SEMANA
Novo vídeo com o testemunho do Fr. José Nunes, OP nos 40 anos da presença dominicana em Angola (Waku-Kungo).